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O futuro da Vida Consagrada

Não sou um especialista em Vida Consagrada, mas eis o argumento com o qual espero convencer muitos leitores a lerem com atenção este artigo: confio profundamente no futuro da vida consagrada, por isso consagrei-me, por isso entreguei a minha vida ainda jovem a Deus e a uma forma específica de anunciar o evangelho de Cristo. Quero contribuir para o futuro da vida consagrada, contribuir para pensar o ser consagrado, porque sinto que eu, a minha congregação e a vida consagrada em geral somos necessários e importantes na Igreja e na sociedade. Espero que muitos nos acompanhem e também se consagrem à missão de dar Jesus ao mundo, de testemunhar o amor de Deus pelas pessoas. E porque no futuro espero encontrar uma vida consagrada cada vez mais alegre, forte e cheia de vida, gostaria que todos refletissem com carinho sobre ela.
Nós, os consagrados e a Igreja no seu conjunto, temos uma bela história para recordar e celebrar, por isso é importante resgatá-la, fazer memória, apesar de o presente parecer obscuro. Vivemos num momento da história cheio de incertezas, onde a vida consagrada parece não saber ao certo o seu lugar. Mas na verdade existem atualmente vários cenários para a vida consagrada, graus diferentes de maturidade, de desenvolvimento, de fervor e de dinamismo. Ao mesmo tempo em que se vê um decréscimo na Europa e nos EUA, muitos países vivem um grande dinamismo na vida consagrada, com enorme fervor carismático e evangélico, especialmente na África, na Ásia e alguns países da América do Sul, como o Brasil.

Uma vida querida por Cristo
A um grupo de bispos brasileiros do Regional Sul 2 em visita ad limina Apostolorum, assim disse o Papa-emérito Bento XVI em novembro de 2010: «Perante a diminuição dos membros em muitos institutos e o seu envelhecimento, evidente em algumas partes do mundo, muitos se interrogam se a vida consagrada seja ainda hoje uma proposta capaz de atrair os jovens e as jovens. Bem sabemos, queridos bispos, que as várias Famílias religiosas desde a vida monástica até às congregações religiosas e sociedades de vida apostólica, desde os institutos seculares até às novas formas de consagração tiveram a sua origem na história, mas a vida consagrada como tal teve origem com o próprio Senhor que escolheu para Si esta forma de vida virgem, pobre e obediente. Por isso, a vida consagrada nunca poderá faltar nem morrer na Igreja: foi querida pelo próprio Jesus como parcela irremovível da sua Igreja».[1]
Eis a nossa primeira certeza: a vida consagrada foi querida por Cristo, por isso terá sempre lugar no mundo e na Igreja. Para mudar o futuro, no entanto, é preciso olhar para o passado, aprender com o que já passou. O que ao longo dos séculos seduziu e conduziu milhares de homens e mulheres para a vida consagrada? Vale a pena recordar alguns momentos fundamentais “de crise da vida consagrada” ao longo da história, pois estes momentos mostram-nos que o que estamos a viver não é nada que já não tenha acontecido na história da Igreja. E o melhor, não é nada que já não tenha sido resolvido e superado.
Em 1349, por exemplo, a europa sofreu fortemente os efeitos da Peste Negra. Na década anterior, haviam cerca de 75.000 religiosos nas ordens mendicantes. Em 1400, após a Peste, não chegavam aos 47.000. Em 1500, por sua vez, já ultrapassavam os 90.000, atingindo o número de 213.000 no ano 1700 (mais do que hoje, se retomarmos os dados da Santa Sé vistos acima). Porém em 1789 surge a Revolução Francesa, fruto do iluminismo. No mundo já contava-se cerca de 300.000 religiosos neste período. Após a revolução e do auge do iluminismo os religiosos no mundo caíram para cerca de 70.000, em 1825[2]. Eis uma verdadeira “crise de vocações” que não pode ser comparada à atual. Entretanto, como aponta o historiador Lawrence Cada, “antes da Revolução Francesa, as ordens religiosas, bem dotadas e bem financiadas, davam a impressão de uma indulgência tão frouxa que havia dúvidas quanto a saber se algum dia voltariam a inspirar os fiéis através do exemplo de uma vida de pobreza. Após a revolução, as ordens religiosas não tinham escolha. Os meios de segurança do passado foram retirados, nunca seriam devolvidos, e as exigências da vida atual obrigavam as novas congregações a adotar um estilo de vida simples e pobre.”[3]
Como a vida consagrada não é um produto humano, ou fruto de filosofias, eis que nos anos seguintes volta a florescer. Durante o século XIX surgiram cerca de 600 novos institutos religiosos, muitos deles ligados à educação e à vida apostólica ativa nas mais variadas áreas. “Na época do Concílio Vaticano II, o número de membros pertencente às comunidades religiosas atingira seu ponto máximo na história da Igreja, ultrapassando até os maiores números alcançados antes da revolução francesa”, recorda Lawrence Cada[4]. Após o Concílio houve novamente inúmeros abandonos, atribuídos a diversos fatores, mas geralmente associados à perda de identidade do clero e à secularização.
É verdade que em cada uma destas transições muitas congregações e ordens desapareceram, deixaram de existir ou fundiram-se com outras. Cerca de 76% das ordens masculinas fundadas antes de 1500 e 64% das fundadas antes de 1800 já não existem. Os autores do livro “Em busca de um futuro para a vida religiosa” traçam inclusive um modelo sociológico muito interessante para compreender o ciclo de vida de um instituto religioso. Segundo estes autores, todas as congregações, ordens e institutos passam por um ciclo de quatro momentos fundamentais: a fundação (que inclui os 20 primeiros anos, em média), a expansão (que envolve duas ou três gerações), a estabilização (bastante variável, mas em geral dura meio século) e finalmente o colapso após um momento crítico. Este colapso não significa o fim de uma ordem, apesar de ter sido assim para os 64% acima. Muitas vezes este colapso significa uma renovação, uma revitalização, ou uma refundação, para utilizar um conceito popular após o Concílio Vaticano II. Essa “refundação” aconteceu em várias ordens e reflete uma transformação, uma recuperação do carisma da fundação e uma profunda renovação da vida de oração, fé e seguimento de Cristo dentro do instituto. É certamente um momento doloroso, no qual é preciso ter coragem para fazer novas perguntas e tomar decisões. “A conveniente renovação da vida religiosa compreende não só um contínuo regresso às fontes de toda a vida cristã e à genuína inspiração dos Institutos mas também a sua adaptação às novas condições dos tempos”.[5]
Por outro lado, após cada período de crise muitas outras congregações e institutos surgiram, impulsionados por grandes fundadores. Homens e mulheres de grande santidade foram fundamentais para as mudanças e por continuar a dar à Igreja sinais de atualidade e vitalidade. Certo é que a vida consagrada sempre soube se reinventar após períodos de crise. Assim como no passado, hoje espera-se um reflorescer semelhante ao que houve após a revolução francesa. Ainda não vemos caminhos claros, mas eles não hão de tardar em aparecer no horizonte. Depois dos eremitas, monges, mendicantes e religiosos de vida apostólica, muitos apostam para o aparecimento de novas formas de vida consagrada. Já sentimos algumas tentativas pelo mundo, algumas ainda embrionárias, é certo, como os institutos seculares e as chamadas “novas comunidades”, que contam com quase 800 novas fundações.[6]
A crise atual da vida consagrada iniciou nos anos 60, no pós-concílio associado ao maio de 68, ao processo profundo de globalização e a uma série de outras “crises”, e está certamente ligada à própria crise de fé. O Papa Francisco recorda muito bem na sua exortação apostólica que: “Em muitos lugares, há escassez de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta de ardor apostólico contagioso nas comunidades, pelo que estas não entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor, paixão de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias onde os sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e fervorosa da comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente a Deus e à evangelização, especialmente se essa comunidade vivente reza insistentemente pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens um caminho de especial consagração.”[7] Por isso a revitalização da vida consagrada é uma realidade de fé, requer amor pela missão e pela própria vida consagrada. Não é a primeira vez que a vida religiosa enfrenta momento de crise, ou de decadência. Podemos aprender com a história acima de tudo que a vida consagrada é dinâmica e capaz de se renovar, porque é querida por Deus, porque foi desejada por Cristo, e porque é importante para a Igreja.
A atual “crise da vida religiosa” será superada em grande parte pelo aparecimento de novas formas de consagração e de seguimento de Cristo, mas é certo também que em todos os momento da história, quando surgiram novas formas de vida consagrada, as formas “tradicionais” procuraram se reformular, renovar, recriar. Agora não será diferente. O monaquismo terá novo vigor, os mendicantes certamente encontrarão novas formas de realizar a sua missão e as congregações de vida ativa se reinventarão a fim de continuar a serem sinais de Cristo entre os homens e mulheres de hoje, continuarem a evangelizar o mundo a partir do mundo.

Centralidade de Cristo
Ao longo destes momentos de crise, as comunidades e congregações que sobreviveram foram sempre as que tinham Cristo no seu centro: fidelidade a Cristo e ao carisma. Às vezes é preciso parar e até mesmo voltar atrás para procurar Cristo, como fizeram Maria e José após visitar Jerusalém (cf. Lc 2,41-52). Recordemos a cena bíblica narrada por Lucas, a única sobre a adolescência de Jesus. O menino, juntamente com os pais, familiares e amigos subiram a Jerusalém, como faziam todos os anos. Após as festividades, começa o retorno para casa. Mas lá pelo meio do caminho José e Maria se apercebem que falta algo. Procuram entre os amigos e familiares e não encontram Jesus. Às vezes é isso o que acontece também na vida de fé, e especialmente na vida consagrada. Os religiosos e religiosas fazem a consagração mas depois se lançam na caminhada, com tantos afazeres, tantos compromissos, tantas “obras”, tantos objetos com os quais se preocuparem... que por vezes esquecem do menino Jesus. Estão tão envolvidos por outras coisas que esquecem do principal, d’Aquele que dá sentido a tudo. Procuram nos conventos, entre as pessoas e muitas vezes não O encontram. O que fazer neste momento? Só há uma alternativa: voltar atrás. Ir a procura de Jesus, percorrer o caminho de volta até O encontrar, assim como fizeram José e Maria. Jesus não está perdido (o evangelho diz que Ele está muito bem, na casa do Pai), nós é que estamos perdidos e só nos “reencontramos” quando vemos Jesus, quando reencontramos aquilo que é o essencial, que obviamente não são as estruturas, ou o número de pessoas que segue na caravana, mas Jesus Cristo. Quando voltamos a colocar Jesus Cristo no centro da nossa vida consagrada.
Isto serve também para dizer que num momento de crise é fundamental voltar às origens, a fim de que o passado (os inícios) iluminem e inspirem o futuro. Retornar às primeiras comunidades e, obviamente, a Cristo é essencial para saber para onde ir. As reformas que trouxeram resultado ao longo da história sempre aconteceram a partir da própria vida eclesial (monaquismo surgiu para corrigir e evitar erros e excessos dos anacoretas, os mendicantes surgiram para evitar e corrigir erros e excessos dos monges, as congregações de vida apostólica surgiram para evitar e corrigir erros e excessos dos mendicantes etc). Neste processo é essencial um olhar profético e nunca perder de vista a missão profética da vida consagrada, muito maior do que a função hierárquica ou clerical.
O Papa Francisco nos ajuda neste processo. Disse ele aos superiores gerais reunidos em Roma que “para verdadeiramente entendermos a realidade, precisamos nos distanciar da posição central de calmaria e de paz, e nos dirigirmos às áreas periféricas. Estar aí ajuda-nos a ver e a entender melhor; ajuda-nos a analisar a realidade de forma mais correta, evitando o centralismo e abordagens ideológicas. (...) Não é uma estratégia boa estar no centro de uma esfera. Para entender, precisamos nos mover ao redor, e assim poder ver a realidade de vários pontos de vista. Temos que nos acostumar a pensar.”
Num encontro com seminaristas, noviços e noviças, durante o Ano da Fé (Sala Paulo VI, 6 de julho de 2013), o Papa dizia ainda: “saí de vós mesmos para anunciar o Evangelho, mas para fazer isto deveis sair de vós mesmos para encontrar Jesus. Há dois caminhos: um rumo ao encontro com Jesus, à transcendência; o segundo rumo aos outros para anunciar Jesus. Estes dois caminham juntos. Se percorres só um deles, não está bem! Penso em Madre Teresa de Calcutá. Era valorosa, esta irmã... Não temia nada, ia pelas ruas... Mas esta mulher não tinha medo nem sequer de se ajoelhar, duas horas, diante do Senhor. Não tenhais medo de sair de vós na oração e na ação pastoral. Sede corajosos para rezar e para ir anunciar o Evangelho.”
Com a generalização da “crise” atual não basta voltar às origens dos institutos em si, algo que muitas congregações fizeram bastante bem após o Vaticano II. É preciso retornar às origens da própria vida consagrada. Recordemos que os primeiros eremitas foram para o deserto não para realizar um apostolado, uma pastoral, uma obra educativa, social ou política. Não eram ordenados, nem reconhecidos por serem intelectuais. No entanto marcaram profundamente a sociedade e a Igreja da época e toda a Igreja e sociedade posterior. Importa o que eram, e não o que faziam. Fugiram do mundo, mas acabaram por mudar o mundo e a forma de viver a fé e a espiritualidade. Com uma ascese radical, uma libertação interior, testemunho, autenticidade, coerência de vida pobre e casta promoveram uma ruptura com a cultura e a sociedade (e até com a Igreja) da época. O fundamental foi a ruptura com o modelo de sociedade vigente, buscando algo novo, diferente, superior.
Por sinal, em todos os momentos de decadência e “crise” da vida consagrada esteve por trás uma “adaptação” aos (maus)hábitos da sociedade vigente. Quanto mais os religiosos e religiosas se aproximam do modo de ser e de viver da sociedade na qual estão inseridos, mais a vida consagrada perde força e entra em “crise”. É preciso primeiro ser, para depois agir. Nunca esquecendo que o “como fazemos” expressa também “o que somos”.
Daqui é fácil recordar que os elementos essenciais que caracterizam a vida consagrada são uma mística profunda (ascese e contemplação), uma liberdade radical (social e económica), uma atitude profética (denúncia e inquietação, por palavras e exemplo). Quando falta isso não é de estranhar que surja uma “crise”. A superação da crise está portanto mais dependente de questões internas do que externas. Como dizem muito bem alguns religiosos sobre a pastoral vocacional atual, “é preciso cuidar do jardim para ter as borboletas por perto, e não ir caçá-las em lugares distantes”.
“O convite de Jesus: «Vinde ver» (Jo 1,39) permanece, ainda hoje, a regra de ouro da pastoral vocacional”, recorda a Vita consecrata (n. 64), mas o que os jovens veem nas nossas comunidades? Será que ficam impressionados? Entusiasmados? José M. Castillho, em O futuro da vida religiosa, denuncia muito bem que atualmente os consagrados “somos homens evangélicos no que dizemos e homens do sistema estabelecido no que fazemos e como somos”[8]. Afirma que criticamos o capitalismo selvagem, mas são as universidades “católicas”, muitas delas geridas e orientadas pedagogicamente por religiosos, que formam os melhores gestores capitalistas. Somos homens de negócio, reconhecidos em muitas áreas, gerimos obras que são verdadeiras empresas (escolas, hospitais, universidades, associações, editoras, lares, hotéis etc.), e muitas vezes não temos tempo para as pessoas e a oração.
A resposta à crise de vocações e a renovação da vida consagrada devem partir de questões como estas: em que é que um consagrado se diferencia de outro cristão leigo ou de uma pessoa qualquer da sociedade? Diante de uma cultura da aparência, do transitório, como damos testemunho do nosso “ser religioso”? O que se quer verdadeiramente da vida consagrada? Manter as obras? Que vida consagrada queremos para a Igreja? Manutenção e sobrevivência do que temos?
À vida consagrada atual falta transparência e, por isso, credibilidade. Pregamos um sistema de valores que se contradiz com a nossa forma de vida. Isso já aconteceu no passado, e podemos aprender com as respostas dadas na altura. Quando nos referimos à “crise” atual da vida consagrada queremos nos referir aos números ou a atitudes? Todos os que estão nas nossas comunidades são dignos religiosos/consagrados?
Para o Cardeal Aviz, um dos maiores desafios a serem enfrentados pela Vida Consagrada hoje é o excesso de obras em detrimento do carisma, ao que está intimamente ligada a “necessidade de recuperar aquela ligação primeira, profunda com Jesus para se deixar moldar por Ele”, e o espírito da vida fraterna. O prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedade de Vida Apostólica recorda também que "é preciso atualizar o diálogo com a cultura atual, escutar o homem e a mulher, perceber quais são as suas sensibilidades, seus valores, conviver e aprender com a sociedade, mas não perder aquilo que vem do carisma e aquilo que vem do Evangelho”[9].
A falta de vocação parece ser consequência e não causa da crise da vida consagrada e é bom ter isso em atenção se queremos uma mudança. Não há vocações porque os jovens não querem esta vida assim como veem: triste, burguesa, superficial etc. Não adianta ir à “caça das borboletas” se o nosso jardim permanece seco. Para citar apenas um exemplo, no passado os anciãos, os religiosos mais velhos, eram tidos como referência, eram os sábios, formadores, mestres, superiores. Porque hoje são tidos como peso? Será só reflexo da sociedade utilitária?
No seu discurso aos superiores gerais, em Roma, o Papa Francisco recordou algumas belas palavras do seu antecessor na cadeira de Pedro. Bento XVI dizia que “o testemunho que pode, realmente, atrair é aquele associado a atitudes não habituais: generosidade, desapego, sacrifício, esquecimento de si próprio no intuito de ajudar os outros. Eis o testemunho, o martírio, da vida religiosa. Para as pessoas isso ‘soa como um alerta’. Os religiosos falam às pessoas com sua vida: ‘O que está a acontecer?’ Estas pessoas estão a dizer-me algo! Elas vão além de um horizonte mundano. Portanto – continuou o Papa, citando Bento XVI – a vida religiosa deve promover um crescimento na Igreja via atração.”[10]
Recorrendo novamente a José M. Castillo, “uma vida consagrada integrada no sistema social dominante deixa de cumprir a razão de ser que tem a vida religiosa na Igreja”[11]. É verdade que o fim do sistema patriarcal e uma série de outras mudanças socioeconómicas recentes abalaram a Igreja e a vida consagrada, mas como reagimos a isso? A Igreja deve ser atraente, insiste o Papa. Dirigindo-se especificamente aos consagrados, exorta-os: “Despertem o mundo! Sejam testemunhos de uma forma diferente de fazer as coisas, de agir, de viver! É possível viver neste mundo de forma diferente. Estamos falando de uma perspectiva escatológica, dos valores do Reino aqui encarnados sobre esta terra. Trata-se de deixar todas as coisas para seguir ao Senhor. Não, não quero dizer ‘radical’. A radicalidade evangélica não é apenas para os religiosos: ela é exigida de todos. Porém, os religiosos seguem ao Senhor de forma especial, seguem-no profeticamente. É este testemunho que espero de vocês. Os religiosos e as religiosas deveriam ser pessoas capazes de despertar o mundo”.[12]
Outro sinal de que a vida consagrada não está bem são as chamadas “vocações da fome”, criticadas em quase todos os institutos. Se há pessoas que querem mudar de status, de classe social, através da consagração é um sinal profundo de que esta vida religiosa não é fiel ao seu propósito. O mesmo diga-se sobre os que buscam a vida religiosa em busca de reconhecimento ou privilégios. Recordemos os grandes modelos de santidade e de vida consagrada do passado como São Francisco, Santa Clara, ou São Nuno. Foram pessoas que fizeram exatamente o contrário: tinham muito e deixaram tudo para seguir Cristo.
Outro sinal de que a vida consagrada não está bem é a busca de soluções ou mudanças apenas para “manter as obras” ou a estrutura. O “tráfico de vocações” (termo utilizado por bispos africanos durante o sínodo sobre a vida consagrada de 1994) pode ser um remédio analgésico, mas não uma solução. Colocar leigos para gerir as obras também, pois o objetivo da vida consagrada não é “manter obras”, mas ser sinal profético. As obras são meios e não fim da vida consagrada. Através de toda a nossa formação, obras e organização conseguimos tornar o evangelho mais difundido, conseguimos vivê-lo mais integralmente? O objetivo principal da vida consagrada é ser diferente da sociedade, ser diferente do “mundo”, seguindo o modelo de Cristo. A vida consagrada deve ser alternativa ao mundo, ao sistema vigente, e não reflexo deste sistema. Aqui é importante novamente recordar as origens da vida consagrada, com os eremitas e anacoretas. A vida eremítica foi uma forma de se afastar do sistema económico, social, político e até eclesial. Se hoje as nossas instituições estão ligadas ao sistema, como podemos fazer e esperar algo diferente? O mais importante é manter o que temos ou buscar algo novo? As novas comunidades pareciam trazer algumas luzes interessantes, mas em pouco tempo já estão tão adaptadas ao sistema como as congregações e ordens tradicionais, com a maior preocupação ligada às obras apostólicas, docentes ou assistenciais.

Muitas luzes no horizonte
Um olhar para a história mostra-nos que a vida consagrada sempre soube dar respostas criativas e de facto despertar o mundo, sendo “testemunho de uma forma diferente de fazer as coisas, de agir, de viver!” A imagem da vida consagrada tende a mudar de tempos em tempos, mas o essencial permanece e nos ilumina: o seguimento radical a Jesus Cristo, a vida de oração e fé profunda, o ora et labora. O vigor da vida consagrada é importante para o vigor da Igreja no seu conjunto, pois a vida consagrada alimenta de modo significativo a fé da Igreja.
É importante também não descurar a formação. Na vida consagrada, mais do que em qualquer outro espaço, a formação deve ser constante. Há sempre que aprender e a inovar. A formação permanente é cada vez mais exigida e há necessidade de uma formação inicial criteriosa e não condescendente com a “carência” vocacional. Como recorda o Papa Francisco, “apesar da escassez vocacional, hoje temos noção mais clara da necessidade de melhor seleção dos candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os seminários com qualquer tipo de motivações, e menos ainda se estas estão relacionadas com insegurança afetiva, busca de formas de poder, glória humana ou bem-estar económico.”[13]
Para avançar é preciso parar e refletir. Que vida consagrada queremos? O futuro precisa certamente de uma Igreja menos clerical e mais evangélico-profética: comunhão, caridade, complementaridade, profecia, corpo, povo. Os consagrados, que ao longo da história sempre manifestaram esta vertente, são capazes de dar isso à Igreja? Pensar o futuro da vida consagrada passa por esta reflexão.
Na entrevista que deu à revista La Civiltà Cattolica, ao ser questionado sobre «qual é hoje na Igreja o lugar dos religiosos e religiosas?», o Papa Francisco, primeiro Pontífice proveniente de uma Ordem Religiosa depois do camaldolense Gregório XVI, eleito em 1831, não hesitou em afirmar: «Os religiosos são profetas. São os que escolheram um seguimento de Jesus, que imitam a sua vida com a obediência ao Pai, a pobreza, a vida de comunidade e a castidade. Neste sentido, os votos não podem cair em caricaturas; de outro modo, por exemplo, a vida comunitária torna-se um inferno e a castidade um modo de viver como solteirões. O voto de castidade deve ser um voto de fecundidade. Na Igreja, os religiosos são chamados em particular a ser profetas que testemunham como Jesus viveu nesta terra e que anunciam como o Reino de Deus será na sua perfeição. Um religioso nunca deve renunciar à profecia. Isto não significa contrapor-se à parte hierárquica da Igreja, mesmo se a função profética e a estrutura hierárquica não coincidem. Estou a falar de uma proposta sempre positiva, que, no entanto, não deve ser medrosa. Pensemos naquilo que fizeram tantos grandes santos monges, religiosos e religiosas, desde Santo Antão, abade. Ser profeta pode significar, por vezes, fazer ruído, não sei como dizer. A profecia faz ruído, alarido, alguns chamam chinfrim. Mas, na realidade, o seu carisma é o de ser fermento: a profecia anuncia o espírito do Evangelho».
E eu acrescentaria: para ser profética, é preciso que a vida consagrada dê espaço para uma certa “loucura”. A vida consagrada não pode ser somente profissionalismo e racionalização, que conduzem à acomodação. A vida consagrada deve beber da Sagrada Escritura e com ela ser “escândalo para os judeus e loucura para os pagãos” (1Cor 1,23). Deve ser “escândalo e loucura”, ou seja, contracorrente, utopia, carisma, como demonstraram os fundadores nas suas intuições carismáticas, motivados pelo Espírito Santo.
A renovação vem de uma certa “loucura”, ou seja, do pensar e fazer diferente, da intuição, pois da estabilidade (racionalização) vem apenas a continuidade e a decadência. Somente “loucos” podem ser solidários numa cultura individualista, ser submissos numa cultura do protagonismo, ser despojados numa cultura da ostentação e do consumismo, ser castos numa cultura hedonista. Mas aqui está o diferencial e o sentido de ser religioso e de defender que a vida consagrada é importante, e por isso tem futuro.
Passados mais de 50 anos do Concílio Vaticano II e do decreto Perfectae caritatis temos a oportunidade para revermos o passado (alegria e louvores), refletirmos sobre o presente (ver como estamos, o que precisam mudar), revermos a nossa própria identidade e ação, iniciativas apostólicas, fidelidade ao carisma original... e projetar um futuro esperançoso, renovando o que for preciso...
Enfim, recordemos as suas inspiradoras palavras do documento Vita consecrate a fim de mantermo-nos sempre vigilantes e otimistas sobre o futuro profícuo da vida consagrada: “Vós não tendes apenas uma história gloriosa para recordar e narrar, mas uma grande história a construir! Olhai o futuro, para o qual vos projeta o Espírito a fim de realizar convosco ainda grandes coisas. Fazei da vossa vida uma ardente expectativa de Cristo, indo ao encontro d'Ele como virgens prudentes que vão ao encontro do Esposo. Permanecei sempre disponíveis, fiéis a Cristo, à Igreja, ao vosso Instituto e ao homem do nosso tempo. Deste modo, sereis renovados por Ele, dia após dia, para construir com o seu Espírito comunidades fraternas, para com Ele lavar os pés aos pobres e dar a vossa insubstituível contribuição para a transfiguração do mundo. Este nosso mundo confiado às mãos do homem, enquanto vai entrando no novo milénio, possa tornar-se cada vez mais humano e justo, sinal e antecipação do mundo futuro, onde Ele, o Senhor humilde e glorioso, pobre e triunfante, será a alegria plena e duradoura para nós e para os nossos irmãos e irmãs, com o Pai e o Espírito Santo.”[14]



[1] Aos bispos brasileiros do Regional Sul 2, 5 de novembro de 2010.
[2] Cf. Lawrence Cada et ali. (1985) Em busca de um futuro para a vida religiosa, Lisboa: Paulus Editora.
[3] Lawrence Cada et ali. Em busca de um futuro para a vida religiosa, p. 65.
[4] Ibidem, p. 65
[5] Perfectae caritatis, n. 2.
[6] Cf. Primo censimento delle nuove comunità, G. Rocca, Roma, Urbaniana University Press, 2010.
[7] Evangelii gaudium, n. 107.
[8] José M. Castillho. (2008) O futuro da vida religiosa, Lisboa: Paulus Editora, p. 107.
[9] In Jornal São Paulo, 31 de março de 2014.
[10] Na 82.ª Assembleia-Geral da União dos Superiores Gerais, Roma, 29 de novembro de 2013.
[11] José M. Castillho. (2008) O futuro da vida religiosa, Lisboa: Paulus Editora, p.105.
[12] Na 82.ª Assembleia-Geral da União dos Superiores Gerais, Roma, 29 de novembro de 2013.
[13] Evangelii gaudium, n. 107.
[14] Vita consecrata, n. 110.

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