Não sou um especialista em Vida Consagrada, mas eis o
argumento com o qual espero convencer muitos leitores a lerem com atenção este
artigo: confio profundamente no futuro da vida consagrada, por isso
consagrei-me, por isso entreguei a minha vida ainda jovem a Deus e a uma forma
específica de anunciar o evangelho de Cristo. Quero contribuir para o futuro da
vida consagrada, contribuir para pensar o ser consagrado, porque sinto que eu,
a minha congregação e a vida consagrada em geral somos necessários e
importantes na Igreja e na sociedade. Espero que muitos nos acompanhem e também
se consagrem à missão de dar Jesus ao mundo, de testemunhar o amor de Deus
pelas pessoas. E porque no futuro espero encontrar uma vida consagrada cada vez
mais alegre, forte e cheia de vida, gostaria que todos refletissem com carinho
sobre ela.
Nós, os consagrados e a Igreja no seu conjunto, temos uma
bela história para recordar e celebrar, por isso é importante resgatá-la, fazer
memória, apesar de o presente parecer obscuro. Vivemos num momento da história
cheio de incertezas, onde a vida consagrada parece não saber ao certo o seu
lugar. Mas na verdade existem atualmente vários
cenários para a vida consagrada, graus diferentes de maturidade, de
desenvolvimento, de fervor e de dinamismo. Ao mesmo tempo em que se vê um
decréscimo na Europa e nos EUA, muitos países vivem um grande dinamismo na vida
consagrada, com enorme fervor carismático e evangélico, especialmente na
África, na Ásia e alguns países da América do Sul, como o Brasil.
Uma vida querida por Cristo
A um grupo de bispos brasileiros do Regional Sul 2 em visita ad limina Apostolorum, assim disse o Papa-emérito Bento
XVI em novembro de 2010: «Perante a diminuição dos membros em muitos institutos
e o seu envelhecimento, evidente em algumas partes do mundo, muitos se
interrogam se a vida consagrada seja ainda hoje uma proposta capaz de atrair os
jovens e as jovens. Bem sabemos, queridos bispos, que as várias Famílias
religiosas desde a vida monástica até às congregações religiosas e sociedades
de vida apostólica, desde os institutos seculares até às novas formas de
consagração tiveram a sua origem na história, mas a vida consagrada como tal
teve origem com o próprio Senhor que escolheu para Si esta forma de vida
virgem, pobre e obediente. Por isso, a vida consagrada nunca poderá faltar nem
morrer na Igreja: foi querida pelo próprio Jesus como parcela irremovível da
sua Igreja».[1]
Eis a nossa primeira certeza: a vida consagrada foi querida por Cristo, por isso terá sempre lugar no
mundo e na Igreja. Para mudar o futuro, no entanto, é preciso olhar para o
passado, aprender com o que já passou. O que ao longo dos séculos seduziu e
conduziu milhares de homens e mulheres para a vida consagrada? Vale a pena
recordar alguns momentos fundamentais “de crise da vida consagrada” ao longo da
história, pois estes momentos mostram-nos que o que estamos a viver não é nada
que já não tenha acontecido na história da Igreja. E o melhor, não é nada que
já não tenha sido resolvido e superado.
Em 1349, por exemplo, a europa sofreu fortemente os
efeitos da Peste Negra. Na década anterior, haviam cerca de 75.000 religiosos
nas ordens mendicantes. Em 1400, após a Peste, não chegavam aos 47.000. Em
1500, por sua vez, já ultrapassavam os 90.000, atingindo o número de 213.000 no
ano 1700 (mais do que hoje, se retomarmos os dados da Santa Sé vistos acima).
Porém em 1789 surge a Revolução Francesa, fruto do iluminismo. No mundo já
contava-se cerca de 300.000 religiosos neste período. Após a revolução e do
auge do iluminismo os religiosos no mundo caíram para cerca de 70.000, em 1825[2]. Eis uma
verdadeira “crise de vocações” que não pode ser comparada à atual. Entretanto,
como aponta o historiador Lawrence Cada, “antes da Revolução Francesa, as
ordens religiosas, bem dotadas e bem financiadas, davam a impressão de uma
indulgência tão frouxa que havia dúvidas quanto a saber se algum dia voltariam
a inspirar os fiéis através do exemplo de uma vida de pobreza. Após a
revolução, as ordens religiosas não tinham escolha. Os meios de segurança do
passado foram retirados, nunca seriam devolvidos, e as exigências da vida atual
obrigavam as novas congregações a adotar um estilo de vida simples e pobre.”[3]
Como a vida consagrada não é um produto humano, ou
fruto de filosofias, eis que nos anos seguintes volta a florescer. Durante o
século XIX surgiram cerca de 600 novos institutos religiosos, muitos deles
ligados à educação e à vida apostólica ativa nas mais variadas áreas. “Na época
do Concílio Vaticano II, o número de membros pertencente às comunidades
religiosas atingira seu ponto máximo na história da Igreja, ultrapassando até
os maiores números alcançados antes da revolução francesa”, recorda Lawrence
Cada[4]. Após o
Concílio houve novamente inúmeros abandonos, atribuídos a diversos fatores, mas
geralmente associados à perda de identidade do clero e à secularização.
É verdade que em cada uma destas transições muitas congregações e ordens
desapareceram, deixaram de existir ou fundiram-se com outras. Cerca de 76% das
ordens masculinas fundadas antes de 1500 e 64% das fundadas antes de 1800 já
não existem. Os autores do livro “Em busca de um futuro para a vida religiosa”
traçam inclusive um modelo sociológico muito interessante para compreender o
ciclo de vida de um instituto religioso. Segundo estes autores, todas as
congregações, ordens e institutos passam por um ciclo de quatro momentos fundamentais:
a fundação (que inclui os 20 primeiros anos, em média), a expansão (que envolve
duas ou três gerações), a estabilização (bastante variável, mas em geral dura
meio século) e finalmente o colapso após um momento crítico. Este colapso não
significa o fim de uma ordem, apesar de ter sido assim para os 64% acima.
Muitas vezes este colapso significa uma renovação, uma revitalização, ou uma refundação, para utilizar um conceito
popular após o Concílio Vaticano II. Essa “refundação” aconteceu em várias
ordens e reflete uma transformação, uma recuperação do carisma da fundação e
uma profunda renovação da vida de oração, fé e seguimento de Cristo dentro do
instituto. É certamente um momento doloroso, no qual é preciso ter coragem para
fazer novas perguntas e tomar decisões. “A conveniente renovação da vida
religiosa compreende não só um contínuo regresso às fontes de toda a vida
cristã e à genuína inspiração dos Institutos mas também a sua adaptação às
novas condições dos tempos”.[5]
Por outro lado, após cada período de crise muitas outras congregações e
institutos surgiram, impulsionados por grandes fundadores. Homens e mulheres de
grande santidade foram fundamentais para as mudanças e por continuar a dar à
Igreja sinais de atualidade e vitalidade. Certo é que a vida consagrada sempre
soube se reinventar após períodos de crise. Assim como no passado, hoje
espera-se um reflorescer semelhante ao que houve após a revolução francesa.
Ainda não vemos caminhos claros, mas eles não hão de tardar em aparecer no
horizonte. Depois dos eremitas, monges, mendicantes e religiosos de vida
apostólica, muitos apostam para o aparecimento de novas formas de vida
consagrada. Já sentimos algumas tentativas pelo mundo, algumas ainda
embrionárias, é certo, como os institutos seculares e as chamadas “novas
comunidades”, que contam com quase 800 novas fundações.[6]
A crise atual da vida consagrada iniciou nos
anos 60, no pós-concílio associado ao maio de 68, ao processo profundo de
globalização e a uma série de outras “crises”, e está certamente ligada à
própria crise de fé. O Papa Francisco recorda muito bem na sua exortação
apostólica que: “Em muitos lugares, há escassez de vocações ao
sacerdócio e à vida consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta
de ardor apostólico contagioso nas comunidades, pelo que estas não
entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor, paixão de levar Cristo aos
outros, surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias onde os sacerdotes
não são muito disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e fervorosa da
comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente a Deus e à
evangelização, especialmente se essa comunidade vivente reza insistentemente
pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens um caminho de
especial consagração.”[7] Por isso a revitalização da vida consagrada é uma
realidade de fé, requer amor pela missão e pela própria vida consagrada. Não é
a primeira vez que a vida religiosa enfrenta momento de crise, ou de
decadência. Podemos aprender com a história acima de tudo que a vida consagrada
é dinâmica e capaz de se renovar, porque é querida por Deus, porque foi
desejada por Cristo, e porque é importante para a Igreja.
A atual “crise da vida religiosa” será superada em grande parte pelo
aparecimento de novas formas de consagração e de seguimento de Cristo, mas é
certo também que em todos os momento da história, quando surgiram novas formas
de vida consagrada, as formas “tradicionais” procuraram se reformular, renovar,
recriar. Agora não será diferente. O monaquismo terá novo vigor, os mendicantes
certamente encontrarão novas formas de realizar a sua missão e as congregações
de vida ativa se reinventarão a fim de continuar a serem sinais de Cristo entre
os homens e mulheres de hoje, continuarem a evangelizar o mundo a partir do
mundo.
Centralidade de Cristo
Ao longo destes momentos de crise, as
comunidades e congregações que sobreviveram foram sempre as que tinham Cristo
no seu centro: fidelidade a Cristo e ao carisma. Às vezes é preciso parar e até
mesmo voltar atrás para procurar Cristo, como fizeram Maria e José após visitar
Jerusalém (cf. Lc 2,41-52). Recordemos a cena bíblica narrada por Lucas, a única
sobre a adolescência de Jesus. O menino, juntamente com os pais, familiares e
amigos subiram a Jerusalém, como faziam todos os anos. Após as festividades,
começa o retorno para casa. Mas lá pelo meio do caminho José e Maria se
apercebem que falta algo. Procuram entre os amigos e familiares e não encontram
Jesus. Às vezes é isso o que acontece também na vida de fé, e especialmente na
vida consagrada. Os religiosos e religiosas fazem a consagração mas depois se
lançam na caminhada, com tantos afazeres, tantos compromissos, tantas “obras”,
tantos objetos com os quais se preocuparem... que por vezes esquecem do menino
Jesus. Estão tão envolvidos por outras coisas que esquecem do principal,
d’Aquele que dá sentido a tudo. Procuram nos conventos, entre as pessoas e
muitas vezes não O encontram. O que fazer neste momento? Só há uma alternativa:
voltar atrás. Ir a procura de Jesus, percorrer o caminho de volta até O
encontrar, assim como fizeram José e Maria. Jesus não está perdido (o evangelho
diz que Ele está muito bem, na casa do Pai), nós é que estamos perdidos e só
nos “reencontramos” quando vemos Jesus, quando reencontramos aquilo que é o
essencial, que obviamente não são as estruturas, ou o número de pessoas que
segue na caravana, mas Jesus Cristo. Quando voltamos a colocar Jesus Cristo no
centro da nossa vida consagrada.
Isto serve também para dizer que num momento de crise
é fundamental voltar às origens, a fim de que o passado (os inícios) iluminem e
inspirem o futuro. Retornar às primeiras comunidades e, obviamente, a Cristo é
essencial para saber para onde ir. As reformas que trouxeram resultado ao longo
da história sempre aconteceram a partir da própria vida eclesial (monaquismo
surgiu para corrigir e evitar erros e excessos dos anacoretas, os mendicantes surgiram
para evitar e corrigir erros e excessos dos monges, as congregações de vida
apostólica surgiram para evitar e corrigir erros e excessos dos mendicantes etc).
Neste processo é essencial um olhar profético e nunca perder de vista a missão
profética da vida consagrada, muito maior do que a função hierárquica ou
clerical.
O Papa Francisco nos ajuda neste processo. Disse
ele aos superiores gerais reunidos em Roma que “para verdadeiramente
entendermos a realidade, precisamos nos distanciar da posição central de
calmaria e de paz, e nos dirigirmos às áreas periféricas. Estar aí ajuda-nos a
ver e a entender melhor; ajuda-nos a analisar a realidade de forma mais
correta, evitando o centralismo e abordagens ideológicas. (...) Não é uma
estratégia boa estar no centro de uma esfera. Para entender, precisamos nos
mover ao redor, e assim poder ver a realidade de vários pontos de vista. Temos
que nos acostumar a pensar.”
Num encontro com seminaristas, noviços e noviças, durante o Ano da Fé
(Sala Paulo VI, 6 de julho de 2013), o Papa dizia ainda: “saí de vós mesmos
para anunciar o Evangelho, mas para fazer isto deveis sair de vós mesmos para
encontrar Jesus. Há dois caminhos: um rumo ao encontro com Jesus, à
transcendência; o segundo rumo aos outros para anunciar Jesus. Estes dois
caminham juntos. Se percorres só um deles, não está bem! Penso em Madre Teresa
de Calcutá. Era valorosa, esta irmã... Não temia nada, ia pelas ruas... Mas
esta mulher não tinha medo nem sequer de se ajoelhar, duas horas, diante do
Senhor. Não tenhais medo de sair de vós na oração e na ação pastoral. Sede
corajosos para rezar e para ir anunciar o Evangelho.”
Com a generalização da “crise” atual não basta
voltar às origens dos institutos em si, algo que muitas congregações fizeram
bastante bem após o Vaticano II. É preciso retornar às origens da própria vida
consagrada. Recordemos que os primeiros eremitas foram para o deserto não para
realizar um apostolado, uma pastoral, uma obra educativa, social ou política.
Não eram ordenados, nem reconhecidos por serem intelectuais. No entanto
marcaram profundamente a sociedade e a Igreja da época e toda a Igreja e
sociedade posterior. Importa o que eram, e não o que faziam. Fugiram do mundo,
mas acabaram por mudar o mundo e a forma de viver a fé e a espiritualidade. Com
uma ascese radical, uma libertação interior, testemunho, autenticidade,
coerência de vida pobre e casta promoveram uma ruptura com a cultura e a sociedade
(e até com a Igreja) da época. O fundamental foi a ruptura com o modelo de
sociedade vigente, buscando algo novo, diferente, superior.
Por sinal, em todos os momentos de decadência e
“crise” da vida consagrada esteve por trás uma “adaptação” aos (maus)hábitos da
sociedade vigente. Quanto mais os religiosos e religiosas se aproximam do modo
de ser e de viver da sociedade na qual estão inseridos, mais a vida consagrada
perde força e entra em “crise”. É preciso primeiro ser, para depois agir. Nunca
esquecendo que o “como fazemos” expressa também “o que somos”.
Daqui é fácil recordar que os elementos
essenciais que caracterizam a vida consagrada são uma mística profunda (ascese
e contemplação), uma liberdade radical (social e económica), uma atitude
profética (denúncia e inquietação, por palavras e exemplo). Quando falta isso
não é de estranhar que surja uma “crise”. A superação da crise está portanto
mais dependente de questões internas do que externas. Como dizem muito bem
alguns religiosos sobre a pastoral vocacional atual, “é preciso cuidar do
jardim para ter as borboletas por perto, e não ir caçá-las em lugares
distantes”.
“O convite de Jesus: «Vinde ver» (Jo 1,39) permanece, ainda hoje, a regra de ouro da pastoral vocacional”,
recorda a Vita consecrata (n. 64), mas
o que os jovens veem nas nossas comunidades? Será que ficam impressionados?
Entusiasmados? José M. Castillho, em O futuro da vida religiosa, denuncia
muito bem que atualmente os consagrados “somos homens evangélicos no que
dizemos e homens do sistema estabelecido no que fazemos e como somos”[8]. Afirma
que criticamos o capitalismo selvagem, mas são as universidades “católicas”,
muitas delas geridas e orientadas pedagogicamente por religiosos, que formam os
melhores gestores capitalistas. Somos homens de negócio, reconhecidos em muitas
áreas, gerimos obras que são verdadeiras empresas (escolas, hospitais,
universidades, associações, editoras, lares, hotéis etc.), e muitas vezes não
temos tempo para as pessoas e a oração.
A resposta à crise de vocações e a renovação da
vida consagrada devem partir de questões como estas: em que é que um consagrado
se diferencia de outro cristão leigo ou de uma pessoa qualquer da sociedade?
Diante de uma cultura da aparência, do transitório, como damos testemunho do
nosso “ser religioso”? O que se quer verdadeiramente da vida consagrada? Manter
as obras? Que vida consagrada queremos para a Igreja? Manutenção e
sobrevivência do que temos?
À vida consagrada atual falta transparência e,
por isso, credibilidade. Pregamos um sistema de valores que se contradiz com a
nossa forma de vida. Isso já aconteceu no passado, e podemos aprender com as
respostas dadas na altura. Quando nos referimos à “crise” atual da vida
consagrada queremos nos referir aos números ou a atitudes? Todos os que estão
nas nossas comunidades são dignos religiosos/consagrados?
Para o Cardeal Aviz, um dos maiores desafios a serem
enfrentados pela Vida Consagrada hoje é o excesso de obras em detrimento do
carisma, ao que está intimamente ligada a “necessidade de recuperar aquela
ligação primeira, profunda com Jesus para se deixar moldar por Ele”, e o
espírito da vida fraterna. O prefeito da Congregação para os Institutos de Vida
Consagrada e as Sociedade de Vida Apostólica recorda também que "é preciso
atualizar o diálogo com a cultura atual, escutar o homem e a mulher, perceber
quais são as suas sensibilidades, seus valores, conviver e aprender com a
sociedade, mas não perder aquilo que vem do carisma e aquilo que vem do
Evangelho”[9].
A falta de vocação parece ser consequência e não causa da crise da vida consagrada e é bom ter isso em atenção se
queremos uma mudança. Não há vocações porque os jovens não querem esta vida
assim como veem: triste, burguesa, superficial etc. Não adianta ir à “caça das
borboletas” se o nosso jardim permanece seco. Para citar apenas um exemplo, no
passado os anciãos, os religiosos mais velhos, eram tidos como referência, eram
os sábios, formadores, mestres, superiores. Porque hoje são tidos como peso?
Será só reflexo da sociedade utilitária?
No seu discurso aos superiores gerais, em Roma, o
Papa Francisco recordou algumas belas palavras do seu antecessor na cadeira de
Pedro.
Bento XVI dizia que “o testemunho que pode, realmente, atrair é aquele
associado a atitudes não habituais: generosidade, desapego, sacrifício,
esquecimento de si próprio no intuito de ajudar os outros. Eis o testemunho, o martírio, da vida religiosa. Para as
pessoas isso ‘soa como um alerta’. Os religiosos falam às pessoas com sua vida:
‘O que está a acontecer?’ Estas pessoas estão a dizer-me algo! Elas vão além de
um horizonte mundano. Portanto – continuou o Papa, citando Bento XVI – a vida religiosa deve
promover um crescimento na Igreja via atração.”[10]
Recorrendo novamente a José M. Castillo, “uma
vida consagrada integrada no sistema social dominante deixa de cumprir a razão
de ser que tem a vida religiosa na Igreja”[11]. É
verdade que o fim do sistema patriarcal e uma série de outras mudanças
socioeconómicas recentes abalaram a Igreja e a vida consagrada, mas como reagimos
a isso? A Igreja deve ser atraente,
insiste o Papa. Dirigindo-se especificamente aos consagrados, exorta-os: “Despertem
o mundo! Sejam testemunhos de uma forma diferente de fazer as coisas, de agir,
de viver! É possível viver neste mundo de forma diferente. Estamos falando de
uma perspectiva escatológica, dos valores do Reino aqui encarnados sobre esta
terra. Trata-se de deixar todas as coisas para seguir ao Senhor. Não, não quero
dizer ‘radical’. A radicalidade evangélica não é apenas para os religiosos: ela
é exigida de todos. Porém, os religiosos seguem ao Senhor de forma especial,
seguem-no profeticamente. É este testemunho que espero de vocês. Os religiosos
e as religiosas deveriam ser pessoas capazes de despertar o mundo”.[12]
Outro sinal de que a vida consagrada não está
bem são as chamadas “vocações da fome”, criticadas em quase todos os
institutos. Se há pessoas que querem mudar de status, de classe social, através da consagração é um sinal
profundo de que esta vida religiosa não é fiel ao seu propósito. O mesmo
diga-se sobre os que buscam a vida religiosa em busca de reconhecimento ou privilégios.
Recordemos os grandes modelos de santidade e de vida consagrada do passado como
São Francisco, Santa Clara, ou São Nuno. Foram pessoas que fizeram exatamente o
contrário: tinham muito e deixaram tudo para seguir Cristo.
Outro sinal de que a vida consagrada não está
bem é a busca de soluções ou mudanças apenas para “manter as obras” ou a
estrutura. O “tráfico de vocações” (termo utilizado por bispos africanos
durante o sínodo sobre a vida consagrada de 1994) pode ser um remédio
analgésico, mas não uma solução. Colocar leigos para gerir as obras também,
pois o objetivo da vida consagrada não é “manter obras”, mas ser sinal
profético. As obras são meios e não fim da vida consagrada. Através de toda a
nossa formação, obras e organização conseguimos tornar o evangelho mais
difundido, conseguimos vivê-lo mais integralmente? O objetivo principal da vida
consagrada é ser diferente da sociedade, ser diferente do “mundo”, seguindo o
modelo de Cristo. A vida consagrada deve ser alternativa ao mundo, ao sistema
vigente, e não reflexo deste sistema. Aqui é importante novamente recordar as
origens da vida consagrada, com os eremitas e anacoretas. A vida eremítica foi
uma forma de se afastar do sistema económico, social, político e até eclesial.
Se hoje as nossas instituições estão ligadas ao sistema, como podemos fazer e
esperar algo diferente? O mais importante é manter o que temos ou buscar algo
novo? As novas comunidades pareciam trazer algumas luzes interessantes, mas em
pouco tempo já estão tão adaptadas ao sistema como as congregações e ordens
tradicionais, com a maior preocupação ligada às obras apostólicas, docentes ou
assistenciais.
Muitas luzes no horizonte
Um olhar para a história mostra-nos que a vida
consagrada sempre soube dar respostas criativas e de facto despertar o mundo, sendo
“testemunho de uma forma diferente de fazer as coisas, de agir, de viver!” A imagem da vida consagrada tende a mudar de tempos
em tempos, mas o essencial permanece e nos ilumina: o seguimento radical a
Jesus Cristo, a vida de oração e fé profunda, o ora et labora. O vigor da vida consagrada é importante para o vigor
da Igreja no seu conjunto, pois a vida consagrada alimenta de modo
significativo a fé da Igreja.
É importante também não descurar a formação. Na vida
consagrada, mais do que em qualquer outro espaço, a formação deve ser
constante. Há sempre que aprender e a inovar. A formação permanente é cada vez
mais exigida e há necessidade de uma formação inicial criteriosa e não
condescendente com a “carência” vocacional. Como recorda o Papa Francisco, “apesar da
escassez vocacional, hoje temos noção mais clara da necessidade de melhor
seleção dos candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os seminários
com qualquer tipo de motivações, e menos ainda se estas estão relacionadas
com insegurança afetiva, busca de formas de poder, glória humana ou bem-estar
económico.”[13]
Para avançar é preciso parar e refletir. Que vida
consagrada queremos? O futuro precisa certamente de uma Igreja menos clerical e
mais evangélico-profética: comunhão, caridade, complementaridade, profecia,
corpo, povo. Os consagrados, que ao longo da história sempre manifestaram esta
vertente, são capazes de dar isso à Igreja? Pensar o futuro da vida consagrada
passa por esta reflexão.
Na
entrevista que deu à revista La Civiltà Cattolica, ao ser questionado sobre «qual é hoje na Igreja o lugar dos religiosos
e religiosas?», o Papa Francisco, primeiro Pontífice proveniente de uma Ordem Religiosa depois do
camaldolense Gregório XVI, eleito em 1831, não hesitou em
afirmar: «Os religiosos são profetas. São os que
escolheram um seguimento de Jesus, que imitam a sua vida com a obediência ao
Pai, a pobreza, a vida de comunidade e a castidade. Neste sentido, os votos não
podem cair em caricaturas; de outro modo, por exemplo, a vida comunitária
torna-se um inferno e a castidade um modo de viver como solteirões. O voto de
castidade deve ser um voto de fecundidade. Na Igreja, os religiosos são
chamados em particular a ser profetas que testemunham como Jesus viveu nesta
terra e que anunciam como o Reino de Deus será na sua perfeição. Um religioso
nunca deve renunciar à profecia. Isto não significa contrapor-se à parte
hierárquica da Igreja, mesmo se a função profética e a estrutura hierárquica
não coincidem. Estou a falar de uma proposta sempre positiva, que, no entanto,
não deve ser medrosa. Pensemos naquilo que fizeram tantos grandes santos
monges, religiosos e religiosas, desde Santo Antão, abade. Ser profeta pode
significar, por vezes, fazer ruído, não sei como dizer. A profecia faz ruído,
alarido, alguns chamam chinfrim. Mas,
na realidade, o seu carisma é o de ser fermento: a profecia anuncia o espírito
do Evangelho».
E eu
acrescentaria: para ser profética, é preciso que a vida consagrada dê espaço
para uma certa “loucura”. A vida consagrada não pode
ser somente profissionalismo e racionalização, que conduzem à acomodação. A
vida consagrada deve beber da Sagrada Escritura e com ela ser “escândalo para
os judeus e loucura para os pagãos” (1Cor 1,23). Deve ser “escândalo e loucura”,
ou seja, contracorrente, utopia, carisma, como demonstraram os fundadores nas
suas intuições carismáticas, motivados pelo Espírito Santo.
A renovação vem de uma certa “loucura”, ou seja, do
pensar e fazer diferente, da intuição, pois da estabilidade (racionalização)
vem apenas a continuidade e a decadência. Somente “loucos” podem ser solidários
numa cultura individualista, ser submissos numa cultura do protagonismo, ser
despojados numa cultura da ostentação e do consumismo, ser castos numa cultura
hedonista. Mas aqui está o diferencial e o sentido de ser religioso e de defender
que a vida consagrada é importante, e por isso tem futuro.
Passados
mais de 50 anos do Concílio Vaticano II e do decreto Perfectae caritatis temos a oportunidade para revermos o passado
(alegria e louvores), refletirmos sobre o presente (ver como estamos, o que
precisam mudar), revermos a nossa própria identidade e ação, iniciativas
apostólicas, fidelidade ao carisma original... e projetar um futuro esperançoso,
renovando o que for preciso...
Enfim, recordemos as suas
inspiradoras palavras do
documento Vita consecrate a fim de mantermo-nos
sempre vigilantes e otimistas sobre o futuro profícuo da vida consagrada: “Vós
não tendes apenas uma história gloriosa para recordar e narrar, mas uma
grande história a construir! Olhai o futuro, para o qual vos projeta o
Espírito a fim de realizar convosco ainda grandes coisas. Fazei da vossa vida
uma ardente expectativa de Cristo, indo ao encontro d'Ele como virgens
prudentes que vão ao encontro do Esposo. Permanecei sempre disponíveis, fiéis a
Cristo, à Igreja, ao vosso Instituto e ao homem do nosso tempo. Deste modo,
sereis renovados por Ele, dia após dia, para construir com o seu Espírito
comunidades fraternas, para com Ele lavar os pés aos pobres e dar a vossa
insubstituível contribuição para a transfiguração do mundo. Este nosso mundo
confiado às mãos do homem, enquanto vai entrando no novo milénio, possa
tornar-se cada vez mais humano e justo, sinal e antecipação do mundo futuro,
onde Ele, o Senhor humilde e glorioso, pobre e triunfante, será a alegria plena
e duradoura para nós e para os nossos irmãos e irmãs, com o Pai e o Espírito
Santo.”[14]
[2] Cf. Lawrence Cada et ali. (1985) Em busca de um futuro para a vida religiosa, Lisboa: Paulus
Editora.
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